sexta-feira, 30 de abril de 2010

CONTOS: O Corvo


O CORVO


Edgar Allan Poe

"Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!"

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BERENICE
Edgar Allan Poe


"Dicebant mihi sodales,
si sepulchrum amicae visitarem,
curas meas aliquantulum fore levatas'
- Ebn Zaiat


DESGRAÇA é variada. O infortúnio da terra é multiforme. Estendendo-se pelo vasto horizonte, como o arco-íris, suas cores são como as deste, variadas, distintas e, contudo, intimamente misturadas. Estendendo-se pelo vasto hori-zonte, como o arco-íris! Como é que, da beleza, derivei eu um exemplo de feiúra? Da aliança da paz, um símile de tristeza? Mas é que, assim como na ética o mal é uma conseqüência do bem, igual-mente, na realidade, da alegria nasce a tristeza. Ou a lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje, ou as agonias que existem agora têm sua origem nos êxtases que podiam ler existido.

Meu nome de batismo é Egeu; o de minha família não o mencionarei. E, no entanto, não há torres no país mais vetustas do que as salas cinzentas e melancólicas do solar de meus avós. Nossa estirpe tem sido chamada uma raça de visionários. Em muitos por-menores notáveis, no caráter da mansão familiar, nos afrescos do salão principal, nas tapeçarias dos dormitórios, nas cinzeladuras de algumas colunas da sala de armas, porém mais especialmente na galeria de pinturas antigas, no estilo da biblioteca, e, por fim, na natureza muito peculiar dos livros que ela continha, há mais que suficiente evidência a garantir minha assertiva.

As recordações de meus primeiros anos estão intimamente ligadas àquela sala e aos seus volumes, dos quais nada mais direi. Ali morreu minha mãe. Ali nasci. Mas é ocioso dizer que eu não havia vivido antes, que a alma não tem existência prévia. Vós negais isto? Não discutamos o assunto. Convencido eu mesmo, não procuro convencer. Há, porém, uma lembrança de forma aérea, de olhos espirituais e expressivos, de sons musicais embora tristes; uma lembrança que jamais será apagada; uma reminiscência parecida a uma sombra, vaga, variável, indefinida, instável; e tão parecida a uma sombra, também, que me vejo na impossibilidade de livrar-me dela enquanto a luz de minha razão existir.

Foi naquele quarto que nasci. Emergindo assim da longa noite daquilo que parecia mas não era, o nada, para logo cair nas mesmas regiões da terra das fadas, num palácio fantástico, nos estranhos domínios do pensamento monástico e da erudição, não é de estranhar que tenha eu lançado em torno de mim um olhar ardente e espantado, que tenha consumido minha infância nos livros e dissipado minha juventude em devaneios; mas é estranho que, com o correr dos anos, e tendo o apogeu da maturidade me encontrado ainda na mansão de meus pais; é maravilhoso que a inércia tenha tombado sobre as fontes da minha vida; é maravilhoso como total inversão se operou na natureza de meus pensamentos mais comuns. As realidades do mundo me afetavam como visões, e somente como visões, enquanto as loucas idéias da terra dos sonhos tornavam-se, por sua vez, não o estofo de minha existência cotidiana, mas, na realidade, a própria existência em si, completa e unicamente.

Berenice e eu éramos primos e crescemos juntos no solar paterno. Mas crescemos diferentemente: eu, de má saúde e mergulhado na minha melancolia, ela, ágil, graciosa e exuberante de energia; ela, entregue aos passeios pelas encostas da colina, eu, aos estudos no claustro. Eu, encerrado dentro do meu próprio coração e dedicado, de corpo e alma, à mais intensa e penosa meditação, ela, divagando descuidosa pela vida, sem pensar em sombras no seu ca-minho ou no vôo saliente das horas de asas lutulentas. Berenice! - invoco-lhe o nome - Berenice! - e das ruínas sombrias da memória repontam milhares de tumultuosas recordações ao som da invocação! Ah! bem viva tenho agora a sua imagem diante de mim, como nos velhos dias de sua jovialidade e alegria! Oh! deslumbrante, porém fantástica beleza! Oh! sílfide entre arbustos de Arnheim! Oh! náiade entre as suas fontes! E depois. . . depois tudo é mistério e horror, uma história que não deveria ser contada. Uma doença, uma fatal doença, soprou, como o simum, sobre seu corpo. E precisamente quando a contemplava, o espírito da metamorfose arrojou-se sobre ela invadindo-lhe a mente, os hábitos e o caráter e, da maneira mais sutil e terrível, perturbando-lhe a própria personalidade! Ah! o destruidor veio e se foi! E a vítima. . . onde estava ela? Não a conhecia. . . ou não mais a conhecia como Berenice!

Entre a numerosa série de males, acarretados por aquele fatal e primeiro que ocasionou uma revolução de tão horrível espécie no ser moral e físico de minha prima, pode-se mencionar como o mais aflitivo e obstinado em sua natureza, uma espécie de epilepsia, que, não raro, terminava em transe cataléptico, transe muito semelhante à morte efetiva e da qual despertava ela quase sempre duma maneira assustadoramente subitânea. Entrementes, minha própria doença -pois me fora dito que eu não poderia dar-lhe outro nome - minha própria doença aumentou e assumiu afinal um caráter de monomania, de forma nova e extraordinária, e a cada hora e momento crescia em vigor e por fim veio a adquirir sobre mim a mais incompreensível ascendência. Esta monomania, se devo assim chamá-la, consistia numa irritabilidade mórbida daquelas faculdades do espírito denominadas pela ciência metafísica "faculdades da atenção ". É mais que provável não me entenderem, mas temo, deveras, que me seja totalmente impossível transmitir à mente do comum dos leitores uma idéia adequada daquela nervosa INTENSIDADE DE ATENÇÃO com que, no meu caso, as faculdades meditativas (para evitar a lin-guagem técnica) se aplicavam e absorviam na contemplação dos mais vulgares objetos do mundo.

Meditar infatigavelmente longas horas, com a atenção voltada para alguma frase frívola, à margem de um livro ou no seu aspecto tipográfico; ficar absorto, durante a melhor parte dum dia de verão, na contemplação duma sombra extravagante, projetada obliquamente sobre a tapeçaria, ou sobre o soalho; perder uma noite inteira olhando a chama imóvel duma lâmpada, ou as brasas de um fogão; sonhar dias inteiros com o perfume de uma flor; repetir, monotonamente, alguma palavra comum, até que o som, à força da repetição freqüente, cessasse de representar ao espírito a menor idéia, qualquer que fosse; perder toda a noção de movimento ou de existência física, em virtude de uma absoluta quietação do corpo, prolongada e obstinadamente mantida - tais eram os mais comuns e menos perniciosos caprichos provocados por um estado de minhas faculdades mentais, não, de fato, absolutamente sem paralelo, mas certamente desafiando qualquer espécie de análise ou explicação.

Sejamos, porém, mais explícitos. A excessiva, ávida e mórbida atenção assim excitada por objetos, em sua própria natureza triviais, não deve ser confundida, a propósito, com aquela propensão ruminativa comum a toda a humanidade e, mais especialmente, do agrado das pessoas de imaginação ardente. Nem era tampouco, como se poderia a princípio supor, um estado extremo, ou um a exageração de tal propensão, mas primária e essencialmente distinta e diferente dela. Naquele caso, o sonhador ou entusiasta, estando interessado por um objeto, geralmente não trivial, perde imperceptivelmente de vista esse objeto através duma imensidade de deduções, e sugestões dele provindas, até que, chegando ao fim daquele sonho acordado, muitas vezes repleto de voluptuosidade, descobre estar o incitamentum, ou causa primeira de suas meditações, inteiramente esvanecido e esquecido. No meu caso, o ponto de partida era invariavelmente frívolo, embora assumisse, por força de minha visão doentia, uma importância irreal e refratada. Nenhuma ou poucas reflexões eram feitas e estas poucas voltavam, obstinadamente, ao objeto primitivo, como a um centro. As meditações nunca eram agradáveis, e, ao fim do devaneio, a causa primeira, longe de estar fora de vista, atingira aquele interesse sobrenaturalmente exagerado, que era a característica principal da doença. Em uma palavra, as faculdades da mente, mais particularmente exercitadas em mim, eram, como já disse antes, as da atenção ao passo que no sonhador-acordado são as especulativas.

Naquela época, os meus livros, se não contribuíam efetivamente para irritar a moléstia, participavam largamente, como é fácil perceber-se, pela sua natureza imaginativa e inconseqüente, das qualidades características da própria doença. Bem me lembro, entre outros, do tratado do nobre italiano Coelius Secundus Curio 'De AMPLI-TUDINE BEATI REGNI DEI;" da grande obra de Santo Agostinho, "A CIDADE DE DEUS"; do "De CARNE CHRISTI", de Tertulia-no, no qual a paradoxal sentença: MORTUS EST DEI FILIUS; CREDIBILE EST QUIA INEPTUM EST: ET SEPULTUS RESUR-REXIT; CERTUM EST QUIA IMPOSSIBiLE EST", absorveu meu tempo todo, durante semanas de laboriosa e infrutífera investigação.

Dessa forma, minha razão perturbada, no seu equilíbrio, por coisas simplesmente triviais, assemelhava-se àquele penhasco marítimo, de que fala Ptolomeu Hefestião, que resistia inabalável aos ataques da violência humana e ao furioso ataque das águas e dos ventos, mas tremia ao simples toque da flor chamada asfódelo. E embora a um pensador desatento possa parecer fora de dúvida que a alteração produzida pela lastimável moléstia no estado moral de Berenice fornecesse motivos vários para o exercício daquela intensa e anormal meditação, cuja natureza tive dificuldades em explicar, contudo tal não se deu absolutamente. Nos intervalos lúcidos de minha enfermidade, a desgraça que a feria me mortificava realmente, e me afetava fundamente o coração aquela ruína total de sua vida alegre e doce. Por isso não deixava de refletir muitas vezes, e amargamente, nas causas prodigiosas que tinham tão subitamente produzido modificações tão estranhas. Mas essas reflexões não participavam da idiossincrasia de minha doença, e eram as mesmas que teriam ocorrido, em idênticas circunstâncias, à massa ordinária dos homens. Fiel a seu próprio caráter, minha desordem mental preocupava-se com as menos importantes, porém mais chocantes mudanças, operadas na constituição física de Berenice, na estranha e verdadeiramente espantosa alteração de sua personalidade.

De modo algum, jamais a amara durante os dias mais brilhantes de sua incomparável beleza. Na estranha anomalia de minha existência, os sentimentos nunca me provinham do coração, e minhas paixões eram sempre do espírito. Através do crepúsculo matutino, entre as sombras estriadas da floresta, ao meio-dia, e no silêncio de minha biblioteca, à noite, esvoaçara ela diante de meus olhos e eu a contemplara, não como a viva e respirante Berenice, mas como a Berenice de um sonho; não como um ser da terra, terreno, mas como a abstração de tal ser; não como coisa para admirar, mas para analisar; não como um objeto de amor, mas como o tema da mais abstrusa, embora inconstante, especulação. E agora. . . agora eu estremecia na sua presença e empalidecia à sua aproximação; embora lamentando amargamente sua decadência, e sua desolada condição, lembrei-me de que ela me amava desde há muito e num momento fatal, falei-lhe em casamento.

Aproximava-se, enfim, o período de nossas núpcias quando, numa tarde de inverno, de um daqueles dias intempestivamente cálidos, sossegados e nevoentos, que são a alma do belo Alcíone, sentei-me no mais recôndito gabinete da biblioteca. Julgava estar sozinho, mas, erguendo a vista, divisei Berenice, em pé à minha frente.

Foi a minha própria imaginação excitada, ou a nevoenta influência da atmosfera, ou o crepúsculo impreciso do aposento, ou as cinzentas roupagens que lhe caiam em torno do corpo, que lhe deram aquele contorno indeciso e vacilante? Não sei dizê-lo. Ela não disse uma palavra e eu, por forma alguma, podia emitir uma só sílaba. Um gélido calafrio correu-me pelo corpo, uma sensação de intolerável ansiedade me oprimia, uma curiosidade devoradora invadiu-me a alma e, recostando-me na cadeira, permaneci por algum tempo imóvel e sem respirar, com os olhos fixos no seu vulto. Ai! sua magreza era excessiva e nenhum vestígio da criatura de outrora se vislumbrava numa linha sequer de suas formas. O meu olhar ar-dente pousou-se afinal em seu rosto.

A fronte era alta e muito pálida e de uma placidez singular. O cabelo, outrora negro, de azeviche, caía-lhe parcialmente sobre a testa e sombreava as fontes encovadas com numerosos anéis, agora duna amarelo vivo, discordando, pelo seu caráter fantástico, da melancolia reinante em suas feições. Os olhos, sem vida e sem brilho, pareciam estar desprovidos de pupilas, e desviei involuntariamente a vista de sua fixidez vítrea para contemplar-lhe os lábios delgados e contraídos. Entreabriram-se e, num sorriso bem significativo, os dentes da Berenice transformada se foram lentamente mostrando. Prouvera a Deus nunca os tivesse visto, ou que, tendo-os visto, tivesse morrido!

O batido duma porta me assustou e, erguendo a vista, vi que minha prima havia abandonado o aposento. Mas do aposento desordenado do meu cérebro não havia saído, ai de mim! e não queria sair, o espectro branco e horrível de seus dentes. Nem uma mancha se via em sua superfície, nem um matiz em seu esmalte, nem uma falha nas suas bordas, que aquele breve tempo de seu sorriso não me houvesse gravado na memória. Via-os agora, mesmo mais distintamente do que os vira antes. Os dentes!. . - Os dentes! Estavam aqui e ali e por toda a parte, visíveis, palpáveis, diante de mim. Compridos, estreitos e excessivamente brancos, com os pálidos lábios contraídos sobre eles, como no instante mesmo do seu primeiro e terrível crescimento. Então desencadeou-se a plena fúria de minha monomania e em vão lutei contra sua estranha e irresistível influência. Os múltiplos objetos do mundo exterior não me despertavam outro pensamento que não fosse o daqueles dentes, Queria-os com frenético desejo. Todos os assuntos e todos os interesses diversos foram absorvidos por aquela exclusiva contemplação. Eles. somente eles estavam presentes aos olhos de meu espírito, e eles, na sua única individualidade, se tornaram a essência de minha vida mental. Via-os sob todos os aspectos. Revolvia-os em todas as suas peculiaridades. Meditava em sua conformação. Refletia na alteração de sua natureza. Estremecia ao atribuir-lhes, em imaginação, faculdades de sentimento e sensação e, mesmo quando despro-vidos dos lábios, capacidade de expressão moral. Dizia-se, com razão, de Mademoiselle de Sallé; que tous ses pas êtaient des sentiments" e de Berenice, com mais séria razão acreditava "que toutes ses dents étaient des idées". Idées! Ah! esse foi o pensamento absurdo que me destruiu! Des idées! ah! eis porque eu os cobiçava tão loucamente! Sentia que somente a posse deles poderia resti-tuir-me a paz, e devolver-me a razão.

E assim cerrou-se a noite em torno de mim. Vieram as trevas, demoraram, foram embora. E o dia raiou mais uma vez. E os nevoeiros de uma segunda noite de novo se adensavam em torno de mim. E eu ainda continuava sentado, imóvel, naquele quarto solitário, ainda mergulhado em minha meditação, ainda com o fantasma dos dentes, mantendo sua terrível ascendência sobre mim, a flutuar, com a mais viva e hedionda nitidez, entre as luzes e som-bras mutáveis do aposento. Afinal, explodiu em meio de meus sonhos um grito de horror e de consternação, ao qual se seguiu, depois de uma pausa, o som de vozes aflitas, entremeadas de surdos lamentos de tristeza e pesar. Levantei-me e, escancarando uma das portas da biblioteca, vi, de pé, na antecâmara, uma criada, toda em lágrimas, que me disse que Berenice não mais. . - vivia! Fora tomada de um ataque epiléptico pela manhã e agora1 ao cair da noite, a cova estava pronta para receber seu morador e todos os preparativos do enterro estavam terminados.

Com o coração cheio de angústia, oprimido pelo temor, dirigi-me, com repugnância, para o quarto de dormir da defunta. Era um quarto vasto, muito escuro, e eu me chocava, a cada passo, com os preparativos do sepultamento. Os cortinados do leito, disse-me um criado, estavam fechados sobre o ataúde e naquele ataúde, acrescentou ele, em voz baixa, jazia tudo quanto restava de Berenice.

Quem, pois, me perguntou se eu não queria ver o corpo ?- Não vi moverem-se os lábios de ninguém; entretanto, a pergunta fora realmente feita e o eco das últimas sílabas ainda se arrastava pelo quarto. Era impossível resistir e, com uma sensação opressiva, dirigi-me a passos tardos para o leito. Ergui de manso as sombrias dobras das cortinas mas, deixando-as cair de novo, desceram elas sobre meus ombros e, separando-me do mundo dos vivos, me encerraram na mais estreita comunhão com a defunta.

Todo o ar do quarto respirava morte; mas o cheiro característico do ataúde me fazia mal e imaginava que um odor deletério se exalava já do cadáver. Teria dado mundos para escapar, para livrar-me da perniciosa influência mortuária, para respirar, uma vez ainda, o ar puro dos céus eternos. Mas, faleciam-me as forças para mover-me, meus joelhos tremiam e me sentia como que enraizado no solo, contemplando fixamente o rígido cadáver, estendido ao comprido, no caixão aberto.

Deus do céu! Seria possível? Ter-se-ia meu cérebro transviado? Ou o dedo da defunta se mexera no sudário que a envolvia? Tremendo de inexprimível terror, ergui lentamente os olhos para ver o rosto do cadáver. Haviam-lhe amarrado o queixo com um lenço, o qual, não sei como, se desatara. Os lábios lívidos se torciam numa espécie de sorriso, e, por entre sua moldura melancólica, os dentes de Berenice, brancos luzentes, terríveis, me fixavam ainda, com uma realidade demasiado vivida. Afastei-me convulsivamente do leito e sem pronunciar uma palavra, como louco, corri para fora daquele quarto de mistério, de horror e de morte. -

Achei-me de novo sentado na biblioteca, e de novo ali estava só. Parecia-me que, havia pouco, despertara de um sonho confuso e agitado. Sabia que era então meia-noite e bem ciente estava de que, desde o pôr-do-sol, Berenice tinha sido enterrada. Mas, do que ocorrera durante esse tétrico intervalo, eu não tinha qualquer percepção positiva, ou pelo menos definida. Sua recordação, porém, estava repleta de horror, horror mais horrível porque impreciso, terror mais terrível porque ambíguo. Era uma página espantosa do registro de minha existência, toda escrita com sombrias, medonhas e ininteligíveis recordações. Tentava decifrá-la, mas em vão; e de vez em quando, como o espírito de um som evadido, parecia-me retinir nos ouvidos o grito agudo e lancinante de uma voz de mulher. Eu fizera alguma coisa; que era, porém? Interrogava-me em voz alta e os ecos do aposento me respondiam "Que era?"

Sobre a mesa, a meu lado, ardia uma lâmpada e, perto dela, estava uma caixinha. Não era de aspecto digno de nota e eu freqüentemente a vira antes, pois pertencia ao médico da família; mas, como viera ter ali, sobre minha mesa, e por que estremecia eu ao contemplá-la? Não valia a pena importar-me com tais coisas e meus olhos, por fim, caíram sobre as páginas abertas de um livro e so-bre uma sentença nelas sublinhada. Eram as palavras singulares, porém simples, do poeta Ebn Zaiat: "Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae visitarem, curas meas aliquantulum fore levatas'. Por que, então, ao lê-las, os cabelos de minha cabeça se eriçaram até a ponta, e o sangue de meu corpo se congelou nas veias?

Uma leve pancada soou na porta da biblioteca e, pálido como o habitante de um sepulcro, um criado entrou, na ponta dos pés. Sua fisionomia estava transtornada de pavor e ele me falou em voz trêmula, rouca e muito baixa. Que disse? Ouvi frases truncadas. Falou-me de um grito selvagem, que perturbara o silêncio da noite. -da acorrência dos moradores da casa. - - de uma busca do lugar de onde viera o som. E depois sua voz se tornou penetrantemente distinta, ao murmurar a respeito de um túmulo violado -- . de um corpo desfigurado, desamortalhado, mas ainda respirante, ainda palpitante, ainda vivo!

Apontou para minhas roupas; estavam sujas de barro e de coágulos de sangue. Eu nada falava e ele pegou-me levemente na mão; havia, gravadas nela, sinais de unhas humanas. Chamou-me a atenção para certo objeto encostado à parede, que contemplei por alguns minutos: era uma pá.

Com um grito, saltei para a mesa e agarrei a caixa que sobre ela jazia. Mas não pude arrombá-la; e, no meu tremor, ela deslizou de minhas mãos e caiu com força, quebrando-se em pedaços. E dela, com um som tintinante, rolaram vários instrumentos de cirurgia dentária, de mistura com trinta e duas coisas brancas, pequenas, como que de marfim, que se espalharam por todo o assoalho.


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CONTOS: O Retrato Oval


O RETRATO OVAL


Edgar Allan Poe


O castelo em que o meu criado se tinha empenhado em entrar pela força, de preferência a deixar-me passar a noite ao relento, gravemente ferido como estava, era um desses edifícios com um misto de soturnidade e de grandeza que durante tanto tempo se ergueram nos Apeninos, não menos na realidade do que na imaginação da senhora Radcliffe. Tudo dava a entender que tinha sido abandonado recentemente. Instalamos-nos num dos compartimentos mais pequenos e menos sumptuosamente mobilados, situado num remoto torreão do edifício. A decoração era rica, porém estragada e vetusta. Das paredes pendiam colgaduras e diversos e multiformes troféus heráldicos, misturados com um desusado número de pinturas modernas, muito alegres, em molduras de ricos arabescos doirados. Por esses quadros que pendiam das paredes - não só nas suas superfícies principais como nos muitos recessos que a arquitetura bizarra tornara necessários - , por esses quadros, digo, senti despertar grande interesse, possivelmente por virtude do meu delírio incipiente; de modo que ordenei a Pedro que fechasse os maciços postigos do quarto, pois que já era noite; que acendesse os bicos de um alto candelabro que estava à cabeceira da minha cama e que corresse de par em par as cortinas franjadas de veludo preto que envolviam o leito. Quis que se fizesse tudo isto de modo a que me fosse possível, se não adormecesse, ter a alternativa de contemplar esses quadros e ler um pequeno volume que acháramos sobre a almofada e que os descrevia e criticava.

Por muito, muito tempo estive a ler, e solene e devotamente os contemplei. Rápidas e magníficas, as horas voavam, e a meia-noite chegou. A posição do candelabro desagradava-me, e estendendo a mão com dificuldade para não perturbar o meu criado que dormia, coloquei-o de modo a que a luz incidisse mais em cheio sobre o livro. Mas o movimento produziu um efeito completamente inesperado. A luz das numerosas velas (pois eram muitas) incidia agora num recanto do quarto que até então estivera mergulhado em profunda obscuridade por uma das colunas da cama. E assim foi que pude ver, vivamente iluminado, um retrato que passava despercebido. Era o retrato de uma jovem que começava a ser mulher. Olhei precipitadamente para a pintura e ato contínuo fechei os olhos. A principio, eu próprio ignorava por que o fizera. Mas enquanto as minhas pálpebras assim permaneceram fechadas, revi em espírito a razão por que as fechara. Foi um movimento impulsivo para ganhar tempo para pensar - para me certificar que a vista não me enganava -, para acalmar e dominar a minha fantasia e conseguir uma observação mais calma e objetiva. Em poucos momentos voltei a contemplar fixamente a pintura. Que agora via certo, não podia nem queria duvidar, pois que a primeira incidência da luz das velas sobre a tela parecera dissipar a sonolenta letargia que se apoderara dos meus sentidos, colocando-me de novo na vida desperta.

O retrato, disse-o já, era de uma jovem. Apenas se representavam a cabeça e os ombros, pintados à maneira daquilo que tecnicamente se designa por vinheta - muito no estilo das cabeças favoritas de Sully. Os braços, o peito, e inclusivamente as pontas dos cabelos radiosos, diluíam-se imperceptivelmente na vaga mas profunda sombra que constituía o fundo. A moldura era oval, ricamente doirada e filigranada em arabescos. Como obra de arte, nada podia ser mais admirável que o retrato em si. Mas não pode ter sido nem a execução da obra nem a beleza imortal do rosto o que tão subitamente e com tal veemência me comoveu. Tão-pouco é possível que a minha fantasia, sacudida da sua meia sonolência, tenha tomado aquela cabeça pela de uma pessoa viva. Compreendi imediatamente que as particularidades do desenho, do vinhetado e da moldura devem ter dissipado por completo uma tal idéia - devem ter evitado inclusivamente qualquer distração momentânea. Meditando profundamente nestes pontos, permaneci, talvez uma hora, meio deitado, meio reclinado, de olhar fito no retrato. Por fim, satisfeito por ter encontrado o verdadeiro segredo do seu efeito, deitei-me de costas na cama. Tinha encontrado o feitiço do quadro na sua expressão de absoluta semelhança com a vida, a qual, a princípio, me espantou e finalmente me subverteu e intimidou. Com profundo e reverente temor, voltei a colocar o candelabro na sua posição anterior. Posta assim fora da vista a causa da minha profunda agitação, esquadrinhei ansiosamente o livro que tratava daqueles quadros e das suas respectivas histórias. Procurando o número que designava o retrato oval, pude ler as vagas e singulares palavras que se seguem:

Era uma donzela de raríssima beleza e tão adorável quanto alegre. E maldita foi a hora em que viu, amou e casou com o pintor. Ele, apaixonado, estudioso, austero, tendo já na Arte a sua esposa. Ela, uma donzela de raríssima beleza e tão adorável quanto alegre, toda luz e sorrisos, e vivaz como uma jovem corça; amando e acarinhando a todas as coisas; apenas odiando a Arte que era a sua rival; temendo apenas a paleta e os pincéis e outros enfadonhos instrumentos que a privavam da presença do seu amado. Era pois coisa terrível para aquela senhora ouvir o pintor falar do seu desejo de retratar a sua jovem esposa. Mas ela era humilde e obediente e posou docilmente durante muitas semanas na sombria e alta câmara da torre, onde a luz apenas do alto incidia sobre a pálida tela. E o pintor apegou-se à sua obra que progredia hora após hora, dia após dia. E era um homem apaixonado, veemente e caprichoso, que se perdia em divagações, de modo que não via que a luz que tão sinistramente se derramava naquela torre solitária emurchecia a saúde e o ânimo da sua esposa, que se consumia aos olhos de todos menos aos dele. E ela continuava a sorrir, sorria sempre, sem um queixume, porque via que o pintor (que gozava de grande nomeada) tirava do seu trabalho um fervoroso e ardente prazer e se empenhava dia e noite em pintá-la, a ela que tanto o amava e que dia a dia mais desalentada e mais fraca ia ficando. E, verdade seja dita, aqueles que contemplaram o retrato falaram da sua semelhança com palavras ardentes, como de um poderosa maravilha, - prova não só do talento do pintor como do seu profundo amor por aquela que tão maravilhosamente pintara.

Mas por fim, à medida que o trabalho se aproximava da sua conclusão, ninguém mais foi autorizado na torre, porque o pintor enlouquecera com o ardor do seu trabalho e raramente desviava os olhos da tela, mesmo para contemplar o rosto da esposa. E não via que as tintas que espalhava na tela eram tiradas das faces daquela que posava junto a ele. E quando haviam passado muitas semanas e pouco já restava por fazer, salvo uma pincelada na boca e um retoque nos olhos, o espírito da senhora vacilou como a chama de uma lanterna. Assente a pincelada e feito o retoque, por um momento o pintor ficou extasiado perante a obra que completara; mas de seguida, enquanto ainda a estava contemplando, começou a tremer e pôs-se muito pálido, e apavorado, gritando em voz alta 'Isto é na verdade a própria vida!', voltou-se de repente para contemplar a sua amada: - estava morta!

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CONTOS: O Gato Preto

O Gato Preto
Edgar Allan Poe

Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastantedoméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã posso morrer e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas conseqüências, tais acontecimento me aterrorizaram, torturaram e destruíram. No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror - mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotescos. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum - uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.

Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tornava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tornei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.

Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.

Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.

Pluto - assim se chamava o gato - era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.

Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento -enrubesço ao confessá-lo - sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tornava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim - que outro mal pode se comparar ao álcool? - e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tornara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.

Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo.Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser.Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.

Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão - dissipados já os vapores de minha orgia noturna -, experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.

Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano - uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante, mesmo quando estamos no melhor de nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado - um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.

Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo,e, desde então, me entreguei ao desespero.

Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito - entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo - coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muita pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela. As palavras "estranho!", "singular!", bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em torno do pescoço do animal.

Logo que vi tal aparição - pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa -, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio.O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça produzira a imagem tal qual eu agora a via.

Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.

Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto.Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme - tão grande quanto Pluto - e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo - e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.

Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.

Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse - detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tornando-se logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher.

De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava.Mas a verdade é que - não sei como nem por quê - seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos - muito gradativamente -, passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como fugisse de uma peste.

Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um do olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.

No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo - apresso-me a confessá-lo -, pelo pavor extremo que o animal me despertava.

Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar - sim, mesmo nesta cela de criminoso -, quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi,e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível - que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa -, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer... e, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, da qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!

Na verdade, naquele momento eu era um miserável - um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído... uma besta-fera que se engendrara em mim, insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso - encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim - pousado eternamente sobre o meu coração!

Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros - os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade - e, enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acesso de cólera, minha mulher - pobre dela! - não se queixava nunca, convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.

Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar. O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.

Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos. Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de idéia e decidi mantê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.

Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.

E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e, tendo depositado ocorpo, com cuidado, de encontro à parede interior, segurei-o nesta posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se poderia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em torno, disse, de mim para comigo: "Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão".

O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante aviolência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite - e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüilo e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.

Transcorreram o segundo e o terceiro dia- e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tornaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.

No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta aponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair.O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tornar duplamente evidente a minha inocência.

- Senhores - disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada -, é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída... (quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes - os senhores já se vão? -, estas paredes são de grande solidez.

Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.

Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.

Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até a parede oposta. Durante uminstante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes. Sobre sua cabeça,com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!

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VERSÃO CINEMA MUDO:

CONTOS: O Coração Denunciador


CORAÇÃO DENUNCIADOR

Edgar Allan Poe

É verdade. Tenho sido e sou nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso. Mas, por que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me aguçou os sentidos, não os destruiu, não os entorpeceu. Era penetrante, acima de tudo, o sentido da audição. Eu ouvia todas as coisas, no céu e na terra. Muitas coisas do inferno eu ouvia. Como, então, sou louco? Prestai atenção. E observai quão lucidamente, quão calmamente vos posso contar toda a historia.

É impossivel dizer como a idéia me penetrou primeiro no cerebro; uma vez concebida, porem, ela me perseguiu dia e noite. Não havia motivo. Não havia colera. Eu gostava do velho. Ele nunca me fizera mal. Nunca me insultara. Eu não desejava seu ouro. Penso que era o olhar dele. Sim, era isso. Um de seus olhos se parecia com o de um abutre.... um olho de cor azul palida, que sofria de catarata. Meu sangue se enregelava, sempre que ele caía sobre mim; e assim, a pouco e pouco, bem lentamente, fui-me decidindo a tirar a vida do velho e desse modo libertar-me daquele olho para sempre.

Ora, aí é que está o problema. Imaginais que sou louco. Os loucos nada sabem. Deverieis, porem, ter-me visto. Deverieis ter visto como precedi cautamente, com que prudencia, com que previsão, com que dissimulação, lancei mãos à obra.

Eu nunca fora mais bondoso para com o velho que durante a semana inteira, antes de matá-lo. E todas as noites, por volta da meia-noite, eu girava o trinco da porta de seu quarto e abria... oh! bem devagarinho. E depois, quando a abertura era suficiente para conter minha cabeça, eu introduzia uma lanterna com tampa, toda velada, bem velada, de modo que nenhuma luz se projetasse para fora, e, em seguida, enfiava a cabeça. Oh! terieis rido ao ver como a enfiava habilmente. Movia-a lentamente, muito, muito lentamente, a fim de não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para colocar a cabeça inteira alem da abertura, até poder vê-lo deitado na cama. Ah! um louco seria precavido assim? E depois, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a tampa da lanterna cautelosamente... oh! bem cautelosamente!... cautelosamente... porque a dobradiça rangia... abria-a só até permitir que apenas um debil raio de luz caisse sobre o olho de abutre. E isto eu fiz durante sete longas noites... sempre precisamente à meia-noite... e sempre encontrei o olho fechado. Assim, era impossivel fazer a minha tarefa, porque não era o velho que me perturbava, mas o seu olho diabolico. E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu penetrava atrevidamente no quarto e falava-lhe sem temor, chamando-o pelo nome com ternura e perguntando como havia passado a noite. Por aí vedes que ele precisaria ser um velho muito perspicaz, para suspeitar que todas noites, justamente à meia-noite, eu o espreitava, enquanto dormia.

Na oitava noite, fui mais cauteloso que de habito, ao abrir a porta. O ponteiro dos minutos de um relogio mover-se-ia mais rapidamente que meus dedos. Jamais, antes daquela noite, sentira eu tanto a extensão de meus proprios poderes, de minha sagacidade. Mal conseguuia conter meus sentimentos de triunfo. Pensar que ali estava eu, a abrir a porta, pouco a pouco, e que ele nem sequer sonhava com os meus atos ou pensamentos secretos... Ri com gosto, entre os dentes, a essa idéia... e talvez ele me tivesse ouvido, porque se moveu de subito na cama, como se assustado. Pensai talvez que recuei? Não! O quarto dele estava escuro como piche, espesso de sombra, pois os postigos se achavam hermeticamente fechados, por medo aos ladrões. E eu sabia, assim, que ele não podia ver a abertura da porta. Continuei a avançar. Cada vez mais. Cada vez mais.

Já estava com a cabeça dentro do quarto a ponto de abrir a lanterna, quando meu polegar deslizou sobre o fecho de lata e o velho saltou da cama, gritando: "Quem está ai?"

Fiquei completamente silencioso e nada disse. Durante uma hora inteira, não movi um musculo. E, por todo esse tempo, não o ouvi deitar-se de novo. Ele ainda estava sentado na cama à escuta. Justamente como eu fizera, noite após noite, ouvindo a ronda da morte próxima.

Depois, ouvi um leve gemido e notei que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de pesar, oh, não. Era o som grave e sufocado que se ergue do fundo da alma, quando sobrecarregada de medo. Bem conhecia esse som. Muitas noites, ao soar a meia-noite, quando o mundo inteiro dormia, ele irrompia do meu proprio peito, aguçando com seu eco espantoso, os terrores que me aturdiam. Disse que bem o conhecia. Conheci tambem o que o velho sentia e tive pena dele, embora abafasse um riso no coração. Eu sabia que ele ficara acordado desde o primeiro leve rumor, quando se voltara para a cama. Daí por diante, seus temores foram crescendo. Tentara imaginá-los sem motivo, mas não fora possivel. Dissera a si mesmo: "é só o vento na chaminé", ou "é só um rato andando pelo chão", ouvi apenas um grito que trilou um instante só. Sim, ele estivera tentando animar-se com essas suposições, mas tudo fora em vão. Tudo em vão, porque a morte, ao aproximar-se dele, projetara sua sombra negra para a frente, envolvendo nela a vitima. E era a influencia tetrica dessa sombra não percebida que o levava a sentir - embora não visse nem ouvisse - a sentir a presença de minha cabeça, dentro do quarto.

Depois de esperar longo tempo, com muita paciencia, sem ouvi-lo deitar-se, resolvi abrir um pouco, muito, muito pouco a tampa da lanterna. Abri-a, podeis imaginar quão furtivamente, até que, por fim, um raio de luz apenas, tenue como o fio de uma teia de aranha, passou pela fenda e caiu sobre o olho de abutre.

Ele estava aberto. Todo, plenamente aberto. E, ao contemplá-lo, minha furia cresceu-o. Vi-o com perfeita clareza. Todo de azul desbotado, com uma horrivel pelicula a cobri-lo, o que me enregelava até a medula dos ossos. Mas não podia ver nada mais da face, ou do corpo do velho, pois dirigira a luz, como por instinto, sobre o maldito lugar.

Ora, não vos disse que apenas é super-acuidade dos sentidos, aquilo que erradamente julgais loucura? Repito, pois, que chegou a meus ouvidos, um som baixo, monotono, rapido como o de um relogio, quando abafado em algodão. Igualmente eu bem sabia que som era aquele. Era o bater do coração do velho. Ele me aumentava a furia, como o bater de um tambor estimula a coragem do soldado.

Ainda aí, porem, refreei-me e fiquei quieto. Tentei manter tão fixamente quanto pude a restea de luz sobre o olho do velho. Entretanto, o infernal tan-tan do coração aumentava. A cada instante ficava mais alto, mais rapido, mais alto, mais rapido. O terror do velho deve ter sido extremo. Cada vez mais alto, repito, a cada momento. Prestai-me bem atenção? Disse-vos que sou nervoso: sou-o. E então, àquela hora morta da noite, tão estranho ruido excitou em mim um terror incontrolavel. Contudo, por alguns minutos mais, dominei-me e fiquei quieto. Mas o bater era cada vez mais alto. Julguei que o coração ia rebentar. E, depois, nova angustia me aferrou: o rumor poderia ser ouvido por um vizinho. A hora do velho tinha chegado. Com um alto berro, escancarei a lanterna e pulei para dentro do quarto. Ele guinchou mais uma vez... uma vez só. Num instante, arrastei-o para o soalho e virei a pesada cama sobre ele. Então sorri alegremente, por ver a façanha realizada. Mas, durante muitos minutos, o coração continuou a bater, com som cavo e surdo. Isto, porem, não me vexava. Não seria ouvido através da parede. Afinal, cessou. O velho estava morto. Removi a cama e examinei o cadaver. Sim, era uma pedra, uma pedra morta. Coloquei minha mão sobre o coração e ali a mantive durante muitos minutos. Não havia pulsação. Estava petrificado. Seu olho não mais me perturbaria.

Se ainda pensais que sou louco, não mais o pensareis, quando eu descrever as sabias precauções que tomei, para ocultar o cadaver. A noite avançava e eu trabalhava apressadamente, porem, em silencio. Em primeiro lugar, esquartejei o corpo. Cortei-lhe a cabeça, os braços e as pernas.

Arranquei depois três pranchas do soalho do quarto e coloquei tudo entre os vãos. Depois recoloquei as tabuas, com tamanha habilidade e perfeição, que nenhum olhar humano, nem mesmo o DELE, poderia distinguir qualquer coisa suspeita. Nada havia a lavar, nem mancha de especie alguma, nem marca de sangue. Fora demasiado prudente no evitá-las. Uma tina tinha recolhido tudo... ah! ah! ah!

Terminadas todas estas tarefas, eram já quatro horas. Mas ainda estava escuro, como se fosse meia-noite. Quando o sino soou a hora, bateram à porta da rua. Desci a abri-la, de coração ligeiro... pois que tinha eu AGORA a temer? Entraram três homens, que se apresentaram, com perfeita mansidão, como soldados da policia. Fora ouvido um grito por um vizinho, durante a noite. Despertara-se a suspeita de um crime. Tinha-se formulado uma denuncia à policia e eles, soldados, tinham sido mandados para investigar.

Sorri... pois que tinha eu a temer? Dei as boas vindas aos cavalheiros. O grito, disse eu, fora meu mesmo, em sonhos. O velho, relatei, estava ausente, no interior. Levei meus visitantes a percorrer toda a casa. Pedi-lhes que dessem uma busca... COMPLETA. Conduzi-os, afinal, ao quarto DELE. Mostrei-lhes suas riquezas, em segurança, intactas. No entusiasmo de minha confiança, trouxe cadeiras para o quarto e mostrei desejos de que eles ficassem ALI, para descansar de suas fadigas, enquanto eu mesmo, na desenfreada audacia de meu perfeito triunfo, colocava minha propria cadeira, precisamente sobre o lugar onde repousava o cadaver da vitima.

Os soldados ficaram satisfeitos. Minhas maneiras os haviam convencido. Sentia-me singularmente à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia cordialmente, conversaram coisas familiares. Mas, dentro em pouco, senti que ia empalidecendo e desejei que eles se retirassem. Minha cabeça doia e parecia-me ouvir zumbidos nos ouvidos. Eles, porem, continuavam sentados e continuavam a conversar. O zumbido tornou-se mais distinto. Continuou e tornou-se ainda mais distinto. Eu falava com mais desenfreio, para dominar a situação. Ela, porem, continuava e aumentava sua perceptibilidade, até que, afinal, descobri que o barulho não era dentro de meus ouvidos.

É claro que, então, a minha palidez aumentou sobremaneira. Mas eu falava ainda mais fluentemente e em tom de voz muito elevado. Não obstante, o som se avolumava... E que podia eu fazer? Era um SOM GRAVE, MONOTONO, RAPIDO... MUITO SEMELHANTE AO DE UM RELOGIO ENVOLTO EM ALGODÃO. Respirava com dificuldade... E, no entanto, os soldados não o ouviam. Falei mais depressa ainda, com mais veemencia. Mas o som aumentava constantemente. Levantei-me e fiz perguntas a respeito de ninharias, em tom bastante elevado e com violenta gesticulação, mas o som constantemente aumentava. Oh! Deus! Que poderia eu fazer? Espumei. enraiveci-me... Praguejei. Fiz girar a cadeira, sobre a qual estivera sentado, e arrastei-a sobre as tabuas, mas o barulho se elevava acima de tudo e continuamente aumentava. Tornou-se mais alto... mais alto... mais alto. E os homens continuavam ainda a passear, satisfeitos, e sorriam. Seria possivel que eles não ouvissem? Deus Todo Poderoso!... não, não! Eles suspeitavam!... Eles SABIAM!... Estavam zombando do meu horror!...

Isto pensava eu e ainda penso.

Outra coisa qualquer porem, era melhor que essa agonia. Qualquer coisa era mais toleravel que essa irrisão. Sentia que devia gritar ou morrer!... E agora... de novo!... escutai... mais alto! MAIS ALTO! MAIS ALTO! MAIS ALTO!...

- Vilões - trovejei - não finjam mais. Confesso o crime. Arranquem as pranchas!... aqui, aqui!... ouçam o batido do seu horrendo coração


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BIOGRAFIAS: Edgar Allan Poe

Edgar Allan Poe



Edgar Allan Poe nasceu em Boston, no dia 19 de Janeiro de 1809. Seu avô David Poe participou da Guerra da Independência, e seu pai (também chamado David Poe) apaixonou-se pela atriz inglesa Elisabeth Arnold, casando-se com ela. Edgar Allan Poe teve dois irmãos e seus pais faleceram pouco tempo depois do nascimento de Rosalie, a filha mais nova do casal. Porém, não ficaram desamparados e foram adotados pelo rico casal John Allan e Frances Keeling Allan.

Poe estudou em Londres na Stoke-Newington; algum tempo depois continuou seus estudos de volta a Richmond, na Universidade Charlotteville. Allan Poe, apesar de muito inteligente era também muito genioso, e isto lhe valeu a expulsão desta universidade.

Edgar Allan Poe era um jovem aventureiro, romântico, orgulhoso e idealista. Continuou seus estudos em Virgínia, mas também foi expulso por não se enquadrar nos padrões comportamentais daquela época. Na verdade, Allan Poe era um boêmio que vivia no luxo, se entregando à bebida, ao jogo e às mulheres. Mais tarde, foi para a Grécia e ingressou no exército lutando contra os turcos.

Porém, suas ambições militares não vingaram, e perdeu-se nos Balcans chegando até a Rússia, sendo repatriado pelo cônsul americano. De volta a América, descobre que sua mãe adotiva havia falecido.

Logo após, alista-se num Batalhão de artilharia e matricula-se na Academia Militar de West Point. Mas com o lançamento de uma compilação de poesias em 1831, desliga-se da Academia e corta relações com seu pai adotivo, devido ao casamento com outra mulher, o que teria deixado Poe muito contrariado.

Aos 22 anos, vivendo na miséria, publica Poemas. Já em Baltimore procura pelo irmão Willian e assiste a morte dele. Allan Poe passa a viver com uma tia muito pobre e viúva com duas filhas. Durante dois anos vive em miséria profunda. Mas vence dois concursos de poesias e o editor Thomaz White entrega-lhe a direção do "Southern Literary Messenger".

Em 1833 lança Uma aventura sem paralelo de um certo Hans Pfaal. Dirige a revista por dois anos. Allan Poe gozava de uma certa reputação com leitores assíduos. Depois de sua vida estabilizada, aos 27 anos casa-se com sua prima de 13 anos, Virgínia Clemn. No ano de 1838 trabalha na Button’s Gentleman Magazine na companhia de sua esposa. O casal vivera na Filadélfia, Nova York e Fordham. Em 1847, sofre com a morte de sua esposa vitimada pela tuberculose.

Em 1849, Allan Poe lança O Corvo. Eureka e Romance Cosmogônico lhe atribuem a fama necessária para provocar a censura da imprensa e da sociedade. Desiludido, volta para Richmore e depois vai para Nova York e entrega-se à bebida. Antes de seguir para a Filadélfia, resolve encontrar-se com velhos amigos. Na manhã seguinte, Poe é encontrado por um amigo em estado de profundo desespero, largado numa taberna sórdida, de onde o transportaram imediatamente para um hospital. Estava inconsciente e moribundo. Ali permaneceu, delirando e chamando repetidamente por um misterioso "Reynolds", até morrer, na manhã do domingo seguinte, aos 39 anos e deixando uma vasta obra em sua vida de sacrifícios e desordem. Era 7 de outubro de 1849, e os Estados Unidos perdiam um de seus maiores escritores. Até hoje não se sabe ao certo o que tenha acontecido naquela noite. Teria o autor, sido vítima da loucura que em tantos contos narrou? Muitos afirmam que tenha sido vítima de uma quadrilha que o envenenou, mas o mais certo é que tenha tido uma overdose de ópio.

Poe escreveu novelas, contos e poemas, exercendo larga influência em autores fundamentais como Baudelaire, Maupassant e Dostoievski. Mas admite-se que seu maior talento era em escrever contos. Escreveu contos de horror ou "gótico" e contos analíticos, policiais. Os contos de horror apresentam invariavelmente personagens doentias, obsessivas, fascinadas pela morte, vocacionadas para o crime, dominadas por maldições hereditárias, seres que oscilam entre a lucidez e a loucura, vivendo numa espécie de transe, como espectros assustadores de um terrível pesadelo. Entre os contos, destacam-se O gato preto, Ligéia, Coração denunciador, A queda da casa de Usher, O poço e o pêndulo, Berenice e O barril de amontillado. Os contos analíticos, de raciocínio ou policiais, entre os quais figuram os antológicos Assassinato de Maria Roget, Os crimes da Rua Morgue e A carta roubada, ao contrário dos contos de horror, primam pela lógica rigorosa e pela dedução intelectual que permitem o desvendamento de crimes misteriosos.

Em seus contos, Poe se concentrava no terror psicológico, vindo do interior de seus personagens ao contrário dos demais autores que se concentravam no terror externo, no terror visual se valendo apenas de aspectos ambientais.

Geralmente, os personagens sofriam de um terror avassalador, fruto de suas próprias fobias e pesadelos, que quase sempre eram um retrato do próprio autor, que sempre teve sua vida regida por um cruel e terrível destino. Nenhum de seus contos é narrado em terceira pessoa, desse modo, vê-se como realmente é sempre "ele" que vê, que sente, que ouve e que vive o mais profundo e escandente terror. São relatos em que o delírio do personagem se mistura de tal maneira à realidade que não se consegue mais diferenciar se o perigo é concreto ou se trata apenas de ilusões produzidas por uma mente atormentada.

Em quase todos os contos, sempre há um mergulho, em certas profundezas da alma humana, em certos estados mórbidos da mente, em recônditos desvãos do subconsciente. Por esses aspectos a psicanálise lança-se ao estudo da obra de Poe, já que a mesma possui uma grande leva de exemplos que ilustram suas demonstrações. Independentemente desse aspecto, sua obra é lembrada pelo talento narrativo impressionante e impressivo, pela força criadora monumental e pela realização artística invejável, fazendo com que Edgar Allan Poe seja considerado um dos maiores autores de contos de terror.


Obras Disponíveis:

Contos

  • A Máscara da Morte Escarlate
  • Berenice
  • William Wilson
  • A Queda da Casa de Usher
  • O barril de Amontillado
  • O Gato Preto
  • O Poço e o Pêndulo
  • O Retrato Oval
  • Silêncio
  • Sombra
  • Leonor
  • Coração Denunciador
  • Uma Descida no Maelstrom
  • O Caixão Quadrangular
  • O Rei Peste
  • Os Crimes da Rua Morgue
  • Revelação Mesmeriana



Poemas

  • O Corvo
  • A Cidade do Mar
  • Annabel Lee

A diferença entre CONTOS e FABULAS

CONTOS


O conto é a forma narrativa, em prosa, de menor extensão (no sentido estrito de tamanho). Entre suas principais características, estão a concisão, a precisão, a densidade, a unidade de efeito ou impressão total – da qual falava Poe (1809-1849) e Tchekhov (1860-1904): o conto precisa causar um efeito singular no leitor; muita excitação e emotividade. Ao escritor de contos dá-se o nome de contista.

Origem

De o livro do mágico (cerca de 4000 a.C.), escrito pelos egípcios, até a Bíblia encontram-se textos com estrutura de contos. No entanto, a autoria deles foi perdida. O primeiro grande contista da História é tido como Luciano de Samosata (125-192). São da mesma época Lucius Apuleius (125-180) e Caio Petrônio.

Do século XIV ao XIX Giovanni Boccaccio (1313-1375) ou (2000-2010) em sua obra Decameron, estabeleceu as bases do que se entende por conto. A época é marcada por contistas célebres, como Geoffrey Chaucer (que publica os Os Contos de Canterbury), Jean de La Fontaine (autor de vários contos infantis, como A cigarra e a formiga) e Charles Perrault, de O Soldadinho de Chumbinho.

No século XIX, destacam-se Honoré de Balzac, Leo Tolstoy, Guy de Maupassant e Mary Shelley.

Na Alemanha, os irmãos Grimm publicam dezenas de contos infantis (muitos recontados dos originais de Perrault), incluindo Branca de Neve e Capuchinho Vermelho (português europeu) ou Chapeuzinho Vermelho (português brasileiro), enquanto Washington Irving estabelece-se como o primeiro contista estadunidense relevante.

Contistas famosos em língua portuguesa

Machado de Assis e Aluízio Azevedo destacam-se no panorama brasileiro do conto, abrindo espaço para contistas como Clarice Lispector, O Tarzan Verde , Lima Barreto, Otto Lara Resende e Lygia Fagundes Telles. Eça de Queirós, mais conhecido como romancista, é referência em Portugal por seus contos reunidos para publicação em 1902, dois anos após seu falecimento, bem como Branquinho da Fonseca, cuja obra inclui diversas antologias de contos.

Em Moçambique, o conto é um género próspero, como se pode ver pela obra de Mia Couto e pela antologia de N
elson Saúte, "As Mãos dos Pretos".

A figura do contista encontra-se perdida na atualidade, em face da valorização do romance em oposição à prosa curta e à poesia enquanto gêneros literários. Um dos poucos redutos em que sobrevive e, mais do que isso, impera é a ficção científica, suportado pelas importantes contribuições de contistas modernos como Isaac Asimov e Machado de assis que é o princpal contista do brasil

Fases

Há várias fases do conto. Tais fases nada têm a ver com aquelas estudadas por Vladimir Propp no livro "A morfologia do conto maravilhoso", no qual, para descrever o conto, Propp o "desmonta" e o "classifica" em unidades estruturais – constantes, variantes, sistemas, fontes, funções, assuntos, etc. Além disso, ele fala de uma "primeira fase" (religiosa) e uma "segunda fase" (da história do conto). Aqui, quando falamos em fases, temos a intenção de apenas darmos um "passeio" pela linha evolutiva do gênero.
Fase oral

Logicamente a primeira fase é a "oral", a qual não é impossivel precisar o seu início: o conto se origina num tempo em que nem sequer existia a escrita; as histórias eram narradas oralmente ao redor das fogueiras das habitações dos povos primitivos – geralmente à noite. Por isso o suspense, o fantástico, que o caracterizou

Fase escrita

A primeira fase escrita é provavelmente aquela em que os egípcios registraram O livro do mágico (cerca de 4000 a.C.). Daí vamos passando pela Bíblia – veja-se como a história de Caim e Abel (2000 a.C.) tem a precisa estrutura de um conto. O antigo e novo testamento trazem muitas outras histórias com a estrutura do conto, como os episódios de José e seus irmãos, de Sansão, de Ruth, de Suzana, de Judith, Salomé; as parábolas: o Bom Samaritano, o Filho Pródigo, a Figueira Estéril, a do Semeador, entre outras.
Geoffrey Chaucer.

No século VI a.C. temos a Ilíada e a Odisséia, de Homero e na literatura Hindu há o Pantchatantra (século II a.C?). De um modo geral, Luciano de Samosata (125-192) é considerado o primeir
o grande nome da história do conto. Ele escreveu "O cínico", "O asno" etc. Da mesmof época é Lucio Apuleyo (125-180), que escreveu "O asno de ouro". Outro nome importante é o de Caio Petrônio (século I), autor de Satiricon, livro que continua sendo reeditado até hoje. As "Mil e uma Noites" aparecem na Pérsia no século X da era cristã.

A segunda fase escrita começa por volta do século XIV, quando registram-se as primeiras preocupações estéticas. Giovanni Boccaccio (1313-1375) aparece com seu Decameron, que se tornou um clássico e lançou as bases do conto tal como o conhecemos hoje, além de ter influenciado, Charles Perrault, La Fontaine, entre outros. Miguel de Cervantes (1547-1616) escreve as "Novelas Exemplares". Francisco Gómez de Quevedo y Villegas (1580-1645) traz "Os sonhos", satirizando a sociedade da época. Os "Contos da Cantuária", de Chaucer (1340?-1400) são publicados por volta de 1700. Perrault (1628-1703) publica "O barba azul", "O gato de botas", "Cinderela", "O soldadinho de chumbo" etc. Jean de La Fontaine (1621-1695) é o contador de fábulas por excelência: "A cigarra e a formiga", "A tartaruga e a lebre", "Aquelas Bolas Cabeludas", "A raposa e as uvas" etc.

No século XVIII o mestre foi Voltairetaynata (1694-1778). Ele escreveu obras importantes como Zadig e Cândido.

Chegando ao século XIX o conto "decola" através da imprensa escrita, toma força e se moderniza. Washington Irving (1783-1859) é o primeiro contista norte-americano de importância. Os irmãos Grimm (Jacob, 1785-1863 e Wilhelm, 1786-1859) publicam "Branca de Neve", "Rapunzel", "O Gato de Botas", "A Bela Adormecida", "O Pequeno Polegar", "Chapeuzinho Vermelho" etc. Os Grimm recontam contos que já haviam sido contados por Perrault, por exemplo. Eles foram tão importantes para o gênero que André Jolles diz que "o conto só adotou verdadeiramente o sentido de forma literária determinada, no momento em que os irmãos Grimm deram a uma coletânea de narrativas o título de Contos para crianças e famílias", ("O conto" em formas simples).

O século XIX foi pródigo em mestres: Nathaniel Hawthorne (1804-1864), Poe, Maupassant (1850-1893), Flaubert (1821-1880), Leo Tolstoy (1828-1910), Mary Shelley (1797–1851), Tchekhov, Machado de Assis (1839-1908), Conan Doyle (1859-1930), Balzac, Stendhal, Eça de Queirós, Aluízio Azevedo.

Não podemos esquecer de nomes como: Hoffman (um dos pais do conto fantástico, que viria influenciar Poe, Machado de Assis, Álvaro de Azevedo e outros), Sade, Adalbert von Chamisso, Nerval, Gogol, Dickens, Turguenev, Stevenson, Kipling, entre outros.

Críticas

Mesmo com tanta história para "contar", o conto continua sendo alvo de preconceitos, chegando ao ponto de algumas editoras terem como política não publicar o gênero. É uma questão de mercado? O conto não vende? E, se não vende, quais os motivos? Sua excessiva banalização através de revistas e jornais? Ou a falsa idéia de que seria uma literatura fácil, secundária, menor? Veja o que pensa Mempo Giardinelli: "Sustento sempre que o conto é o gênero literário mais moderno e que maior vitalidade possui, pela simples razão que as pessoas jamais deixarão de contar o que se passa, nem de interessar-se pelo que lhes contam bem contado". "Comecei escrevendo contos, mas me vi forçado a mudar de rumo por pedidos de editores que queriam romances. Mas, cada vez que me vejo livre dessas pressões editoriais, volto ao conto… porque, em literatura, o que me deixa realmente satisfeito é escrever um conto"[carece de fontes?] (René Avilés Fabila em Assim se escreve um conto). Maupassant dizia que escrever contos era mais difícil do que escrever romances. Ele escreveu cerca de 300 contos e, segundo se diz, ficou rico com eles. Machado de Assis também não achava fácil escrever contos: "É gênero difícil, a despeito de sua aparente facilidade", (citado por Nádia Battella Gotlib em Teoria do Conto). Faulkner (1897-1962) pensava da mesma maneira: "…quando seriamente explorada, a história curta é a mais difícil e a mais disciplinada forma de escrever prosa… Num romance, pode o escritor ser mais descuidado e deixar escórias e superfluidades, que seriam descartáveis. Mas num cont
o… quase todas as palavras devem estar em seus lugares exatos", (citado por R. Magalhães Júnior em A arte do conto).

Numa entrevista ao jornal Folha de S. Paulo (de 4 de fevereiro de 1996, página 5-11), Moacyr Scliar (1937), mais conhecido como romancista do que como contista, revela sua preferência pelo conto: "Eu valorizo mais o conto como forma literária. Em termos de criação, o conto exige muito mais do que o romance… Eu me lembro de vários romances em que pulei pedaços, trechos muito chatos. Já o conto não tem meio termo, ou é bom ou é ruim. É um desafio fantástico. As limitações do conto estão associadas ao fato de ser um gênero curto, que as pessoas ligam a uma idéia de facilidade; é por isso que todo escritor começa contista". "Penso que, não por casualidade, a nossa época (anos 80) é a época do conto, do romance breve", diz Italo Calvino (1923-1985) em Por que ler os clássicos. Num artigo sobre Borges (1899-1986), Calvino disse que lendo Borges veio-lhe muitas vezes a tentação de formular uma poética do escrever breve, louvando suas vantagens em relação ao escrever longo. "A última grande invenção de um gênero literário a que assistimos foi levada a efeito por um mestre da escrita breve, Jorge Luis Borges, que se inventou a si mesmo como narrador, um ovo de Colombo que lhe permitiu superar o bloqueio que lhe impedia, por volta dos 40 anos, passar da prosa ensaística à prosa narrativa." (Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio). "No decurso de uma vida devotada principalmente aos livros, tenho lido poucos romances e, na maioria dos casos, apenas o senso do dever me deu forças para abrir caminho até a última página. Ao mesmo tempo, sempre fui um leitor e releitor de contos… A impressão de que grandes romances como Dom Quixote e Huckleberry Finn são virtualmente amorfos, serviu para reforçar meu gosto pela forma do conto, cujos elementos indispensáveis são economia e um começo, meio e fim claramente determinados. Como escritor, todavia, pensei durante anos que o conto estava acima de meus poderes e foi só depois de uma longa e indireta série de tímidas experiências narrativas que tomei assent
o para escrever estórias propriamente ditas." (Jorge Luis Borges, Elogio da sombra/Perfis - Um ensaio autobiográfico).

Influência

Está evidente a identificação do conto com a "falta" de tempo dos habitantes dos grandes centros urbanos, com a industrialização. Afinal, foi graças à imprensa escrita, que o gênero se popularizou no Brasil, no século XIX: os grandes jornais sempre davam espaço ao conto. Antônio Hohlfeldt em "Conto brasileiro contemporâneo" diz que "pode-se verificar que, na evolução do conto, há uma relação entre a revolução tecnológica e a técnica do conto".

Na introdução de Maravilhas do conto universal, Edgard Cavalheiro diz: "A autonomia do conto, seu êxito social, o experimentalismo exercido sobre ele, deram ao gênero grande realce na literatura, destaque esse favorecido pela facilidade de circulação em diferentes órgãos da imprensa periódica. Creio que o sucesso do conto nos últimos tempos (anos 60 e 70) deve ser atribuído, em parte, à expansão da imprensa".

Além de criar o mercado de consumo e a necessidade de alfabetização em massa, a industrialização também criou a necessidade de informações sintéticas. No século passado essas informações vinham do jornalismo e do livro; neste século vêm do cinema, rádio e televisão. Assim, no seu
início, o conto pegou uma carona na imprensa escrita; agora não tem mais esse espaço. Será que o conto se adaptará às novas tecnologias? TV, Internet etc? De qualquer forma, no Brasil, o conto surgiu mesmo foi através da imprensa em meados do século XIX. Por isso, naquela época, quase todos os contistas eram jornalistas. E não foi só no Brasil que isso ocorreu.

Essa tecnologia é, também, em parte, "culpada" pelo preconceito em relação ao gênero. "A linha normativa gera uma série de manuais que prescrevem como escrever contos. E a revista popular propicia uma comercialização gradativa do gênero. Tais fatos são tidos como responsáveis pela degradação técnica e pela formação de estereótipos de contos que, na era industrializada do capitalismo americano, passa a ser arte padronizada, impessoal, uniformizada, de produção veloz e barata. Tais preocupações provocam, por sua vez, um movimento de diferenciação entre o conto comercial e o conto literário. Daí talvez tenha surgido o preconceito contra o conto…" (Nádia Battella Gotlib, op. cit.).

Esse fenômeno também foi notado no Brasil no início dos anos 70. As influências exercidas pela imprensa escrita, revistas, TVs, levaram o conto a um ponto de praticamente perder sua "identidade": sendo "quase tudo", passou a ser quase "nada".

Na década de 20 temos os modernistas e o conto agora é essencialmente urbano/suburbano. Eles propuseram a renovação das formas, a ruptura com a linguagem tradicional, a renovação dos meios de expressão etc. Procura-se evitar rebuscamentos na linguagem, a narrativa é mais objetiva, a frase torna-se mais curta e a comunicação mais breve.

Nesta mesma linha, Poe, que também foi o primeiro teórico do gênero, diz: "Temos necessidade de uma
literatura curta, concentrada, penetrante, concisa, ao invés de extensa, verbosa, pormenorizada… É um sinal dos tempos… A indicação de uma época na qual o homem é forçado a escolher o curto, o condensado, o resumido, em lugar do volumoso" (citado por Edgard Cavalheiro na introdução de Maravilhas do conto universal).

Extensão

Segundo outras definições, o conto não deve ocupar mais de 7.500 palavras. Atualmente entende-se que pode variar entre um mínimo de 1.000 e um máximo de 20.000 palavras. Mas toda e qualquer limitação de um mínimo ou máximo de palavras é descartada e ignorada por escritores e leitores.

O romance "Vidas secas" (de Graciliano Ramos), "A festa" (de Ivan Ângelo) e alguns romances de Bernardo Guimarães (1825-1884) e Autran Dourado, podem ser lidos como uma série de contos. Também "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba" (de Machado de Assis), "O Processo" (de Franz Kafka), são constituídos por pequenos contos. São os chamados "romances desmontáveis". Assis Brasil vai mais longe ao afirmar que "Grande Sertão: veredas" (de Guimarães Rosa), é um conto alongado, pois o escritor tê-lo-ia como narrativa curta. O "Grande Sertão", como sabemos, tem mais de 500 páginas. Todas essas colocações demonstram como é difícil definir o conto; mesmo assim, quem o conhece, não o confunde com outro gêner
o.

Neste século podemos incluir entre os grandes: O. Henry, Anatole France, Virginia Woolf, Katherine Mansfield, Kafka, James Joyce, William Faulkner, Ernest Hemingway, Máximo Gorki, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Aníbal Machado, Alcântara Machado, Guimarães Rosa,Isaac Bashevis Singer,Nelson Rodrigues, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Osman Lins, Clarice Lispector, Jorge Luís Borges, Lima Barreto.

Outros nomes importantes do conto no Brasil: Julieta Godoy Ladeira, Otto Lara Resende, Manoel Lobato, Sérgio Sant’Anna, Moreira Campos, Ricardo Ramos, Edilberto Coutinho, Breno Accioly, Murilo Rubião, Moacyr Scliar, Péricles Prade, Guido Wilmar Sassi, Samuel Rawet, Domingos Pellegrini Jr, José J. Veiga, Luiz Vilela, , Sergio Faraco, Victor Giudice, Lygia Fagundes Telles, entre outros. Em Portugal destaca-se, entre outros, Eça de Queirós.

Para um escritor que faz da sua escrita, arte, a trama/o enredo não têm muita importância; o que mais importa é como (forma) contar e não o que (conteúdo) contar. Borges dizia que contamos sempre a mesma fábula. Julio Cortázar (1914-1984) diz que não há temas bons nem temas ruins; há somente um tratamento bom ou ruim para determinado tema. ("Alguns aspectos do conto", in Valise de cronópio). Claro que há que ter cuidado c
om o excesso de formalismos para não virar personagem daquela piada: um escritor passou a vida toda trabalhando as formas para criar um estilo perfeito para impressionar o mundo; quando conseguiu alcançá-lo, descobriu que não tinha nada para dizer com ele.
[editar] Conteúdo e forma

Forma: expressão ou linguagem mais os elementos concretos e estruturados, como as palavras e as frases. Conteúdo: é imaterial (fixado e carregado pela forma); são as personagens, suas ações, a história (ver Céu, inferno, Alfredo Bosi).

Há contos de Machado de Assis, de Katherine Mansfield, de José J. Veiga, de Tchecov, de Clarice Lispector, por exemplo, que não são "contáveis", não há "nada" acontecendo. O essencial está no "ar", na atmosfera, na forma de narrar, no "estilo". No livro "Que é a literatura?" de Jean-Paul Sartre diz que "ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo. E o "estilo", decerto, é o que determina o valor da prosa".

Necessidades básicas

O conto necessita de
tensão, ritmo, o imprevisto dentro dos parâmetros previstos, unidade, compactação, concisão, conflito, início, meio e fim; o passado e o futuro têm significado menor. O "flashback" pode acontecer, mas só se absolutamente necessário, mesmo assim da forma mais curta possível.
[editar] Final enigmático

O final enigmático prevaleceu até Maupassant (fim do século XIX) e era muito importante, pois trazia o desenlace surpreendente (o fechamento com "chave de ouro", como se dizia). Hoje em dia tem pouca importância; alguns críticos e escritores acham-no perfeitamente dispensável, sinônimo de anacronismo. Mesmo assim não há como negar que o final no conto é sempre mais carregado de tensão do que no romance ou na novela e que um bom final é fundamental no gênero. "Eu diria que o que opera no conto desde o começo é a noção de fim. Tudo chama, tudo convoca a um final" (Antonio Skármeta, Assim se escreve um conto).

Neste gênero, como afirmou Tchecov, é melhor não dizer o suficiente do que dizer demais. Para não dizer demais é melhor, então, "sugerir" como se tivesse de haver um certo "silêncio" entremeando o texto, sustentando a intriga, mantendo a tensão. Não é o que acontece no conto "A missa do galo", de Machado de Assis? Especialmente nos diálogos; não exatamente pelo que estes dizem, mas pelo que deixam de dizer. Ricardo Piglia, comentando alguns contos de Hemingway (1898-1961), diz que o mais importante nunca se conta: "O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permite ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta" (O laboratório do escritor). Piglia diz que conta uma história como se tivesse contando outra. Como se o escritor estivesse narrando uma história "visível", disfarçando, escondendo uma história secreta. "Narrar é como jogar pôquer: todo segredo consiste em fingir que se mente
quando se está dizendo a verdade." (Prisão perpétua). É como se o contista pegasse na mão do leitor é desse a entender que o levaria para um lugar, mas Rebeca , no fim, leva-o para outro. Talvez por isso, D.H. Lawrence tenha dito que o leitor deve confiar no conto, não no contista. O contista é o terrorista que se finge de diplomata, como diz Alfredo Bosi sobre Machado de Assis (op. cit.).

Segundo Cristina Perí-Rossi, o escritor contemporâneo de contos não narra somente pelo prazer de encadear fatos de uma maneira mais ou menos casual, senão para revelar o que há por trás deles (citada por Mempo Giardinelli, op. cit). Desse ponto de vista a surpresa se produz quando, no fim, a história secreta vem à superfície.

No conto a trama é linear, objetiva, pois o conto, ao começar, já está quase no fim e é preciso que o leitor "veja" claramente os acontecimentos. Se no romance o espaço/tempo é móvel, no conto a linearidade é a sua forma narrativa por excelência. "A intriga completa consiste na passagem de um equilíbrio a outro. A narrativa ideal, a meu ver, começa por uma situação estável que será perturbada por alguma força, resultando num desequilíbrio. Aí entra em ação outra força, inversa, restabelecendo o equilíbrio; sendo este equilíbrio parecido com o primeiro, mas nunca idêntico." (Gom Jabbar em Hardcore, baseado em Tzvetan Todorov).

Em outras palavras: no geral o conto "se apresenta" com "uma ordem". O conflito traz uma "desordem" e a solução desse conflito (favorável ou não) faz retornar à "ordem" – agora com ganhos e perdas, portanto essa ordem difere da primeira. "O conto é um problema e uma solução", diz Enrique Aderson Imbert.

Diálogos

Os diálogos são de suma importância; sem eles não há discórdia, conflito, fundamentais ao gênero. A melhor forma de se informar é através dos diálogos; mesmo no conto em que o ingrediente narrativo seja importante. "A função do diálogo é expor." (Henry James, 1843-1916).

Em alguns escritores o diálogo é uma ferramenta absolutamente indispensável. Caio Porfírio Carneiro, por exemplo, chega ao ponto de escrever contos compostos apenas por diálogos, sem que, em nenhum instante, apareça um narrador. Em 172 páginas de Trapiá, um clássico da década de 60, há apenas seis páginas sem diálogos. Vejamos os tipos de diálogos:

1. Direto: (discurso direto) as personagens conversam entre si; usam-se os travessões. Além de ser o mais conhecido é, também, predominante no conto.
2. Indireto: (discurso indireto) quando o escritor resume a fala da personagem em forma narrativa, sem destacá-la. Vamos dizer que a personagem conta como aconteceu o diálogo, quase que reproduzindo-o. Essas duas primeiras formas podem ser observadas no conto "A Missa do Galo", Machado de Assis.
3. Indireto livre (discurso indireto livre) é a fusão entre autor e personagem (primeira e terceira pessoa da narrativa); o narrador narra, mas no meio da narrativa surgem diálogos indiretos da personagem como que complementando o que disse o narrador.

Veja-se o caso de "Vidas secas": em certas passagens não sabemos exatamente quem fala – é o narrador (terceira pessoa) ou a consciência de Fabiano (primeira pessoa)? Este tipo de discurso permite expor os pensamentos da personagem sem que o narrador perca seu poder de mediador.

1. Monólogo interior (ou fluxo de consciência) é o que se passa "dentro" do mundo psíquico da personagem; "falando" consigo mesma; veja algumas passagens de Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector. O livro A canção dos loureiros (1887), de Édouard Dujardin é o precursor moderno deste tipo de discurso da personagem. O Lazarillo de Tormes, de autor desconhecido, é considerado o verdadeiro precursor deste tipo de discurso. Em Ulisses, Joyce (inspirado em Dujardin) radicalizou no monólogo interior.

Focos narrativos

1. Primeira pessoa: Personagem principal conta sua história; este narrador limita-se ao saber de si próprio, fala de sua própria vivência. Esta é uma narrativa típica do romance epistolar (século XVIII).
2. Terceira pessoa: O texto é narrado em 3ª pessoa e neste caso podemos ter:

A) Narrador observador: o narrador limita-se a descrever o que está acontecendo, "falando" do exterior, não nos colocando dentro da cabeça da personagem; assim não sabemos suas emoções, idéias, pensamentos. O narrador apenas descreve o que vê, no mais, especula.

B) Narrador onisciente conta a história; o narrador tudo sabe sobre a vida das personagens, sobre seus destinos, idéias, pensamentos. Como se narrasse de dentro da cabeça delas.



FABULAS

A fábula é uma história narrativa que surgiu no Oriente, mas foi particularmente desenvolvido por um escravo chamado Esopo, que viveu no século 6º. a.C., na Grécia antiga. Esopo inventava histórias em que os animais eram os personagens. Por meio dos diálogos entre os bichos e das situações que os envolviam, ele procurava transmitir sabedoria de carácter moral ao homem. Assim, os animais, nas fábulas, tornam-se exemplos para o ser humano. Cada bicho simboliza algum aspecto ou qualidade do homem como, por exemplo, o leão representa a força; a raposa, a astúcia; a formiga, o trabalho etc. É uma narrativa inverossímil, com fundo didático. Quando os personagens são seres inanimados, objetos, a fábula recebe o nome de apólogo. A temática é variada e contempla tópicos como a vitória da fraqueza sobre a força, da bondade sobre a astúcia e a derrota de preguiçosos.

A fábula já era cultivada entre assírios e babilônios, no entanto foi o grego Esopo quem consagrou o gênero. La Fontaine foi outro grande fabulista, imprimindo à fábula grande refinamento. George Orwell, com sua Revolução dos Bichos (Animal Farm), compôs uma fábula (embora em um sentido mais amplo e de sátira política).

As literaturas portuguesa e brasileira também cultivaram o gênero com Sá de Miranda, Diogo Bernardes, Manoel de Melo, Bocage, Monteiro Lobato e outros.Uma fábula é um conto em que as personagens falam sendo animais e que há sempre uma frase a ensinar-nos alguma coisa para não cometermos erro.

Fábulas de Esopo e La Fontaine
Justiniano José da Rocha

APRESENTAÇÃO
Nélson Jahr Garcia


Fábulas num site de propaganda ideológica? Sim, as fábulas constituem meios de inculcação de idéias em várias culturas do mundo, inclusive no Brasil.
São histórias que contêm concepções sobre a natureza física, a organização e funcionamento das sociedades, regras de conduta e comportamento, objetivos de vida que devem ser almejados.
São transmitidas por pais, professores, sacerdotes, até políticos e homens públicos. Estão em livros, peças de teatro, filmes, em todas as formas de comunicação enfim.
No livro, que aqui apresentamos, há várias sínteses das obras de Esopo e La Fontaine. Várias já foram absorvidas e incorporadas à cultura brasileira. Mencionando apenas algumas, temos: "A formiga e a cigarra", "A galinha dos ovos de ouro", "A raposa e as uvas", "A lebre e a tartaruga", "O lobo e o cordeiro". Algumas se transformaram em ditados e expressões populares: "mãe coruja", "burro em pele de leão", "atirar pérolas aos porcos", "contar com ovos na galinha", "morder a mão do dono", "unidos jamais serão vencidos". As fábulas contêm a experiência humana de séculos e, por isso merecidas ser lidas e admiradas. Mas devem ser analisadas com critério e senso crítico: até que ponto representam interesse predominantes na sociedade? Têm validade nos dias atuais? Correspondem à realidade social e à vida cotidiana? Cabe ao leitor tirar suas conclusões.


FÁBULA I.
O galo e a pérola.


Um galo andava catando em um monturo vermes ou migalhas que comesse. Deu com uma pérola, e exclamou: "Ah se te achara um lapidário! a mim porém de que vales? antes um grão de milho ou algum bichinho." Disse foi-se buscando por diante seu parco alimento.
MORALIDADE - A riqueza só tem valor para quem a sabe aproveitar.


FÁBULA II
O cão e a máscara.

Procurando um osso que roer, encontrou um cão uma máscara: era formosíssima, e de cores tão belas quão animadas; o cão farejou-a, e reconhecendo o que era, desviou-se com desdém.
A cabeça é de certo bonita, disse; mas não tem miolos.
MORALIDADE. - Sobram neste mundo cabeças bonitas, porém desmioladas que só merecem desprezo.


FÁBULA III.
O cão e a carne.

Ia um cão atravessando um rio; levava na boca um bom pedaço de carne. No fundo da água viu a sombra da carne; era muito maior. Cobiçoso, soltou a que tinha na boca para agarrar na outra; por mais, porém, que mergulhasse, ficou logrado.
MORALIDADE - Nunca deixes o certo pelo duvidoso. De todas as fraquezas humanas a cobiça é a mais comum, e é todavia a mais castigada.


FÁBULA IV.
A mosca e o carro.


Ia uma mula puxando um carro estava ele pesadíssimo; a estrada era pedregosa e cheia de covas, e a mula suava dobrando de esforço, e tendo em paga as chicotadas do arreieiro. Uma mosca que estava então sobre a cabeça do animal, compadeceu-se dele e disse-lhe ao ouvido : "Pobrezinho, vou aliviar-te do meu peso; agora já poderás puxar o carro."
MORALIDADE. - Quanta gente, tendo a importância da mosca, tem igual presunção?



As fábulas de Esopo, La Fontaine e Monteiro Lobato como recurso didático
Rejane Pivetta de Oliveira 1


Introdução à recepção do texto

Atividade 1 – Construindo a compreensão do gênero

O professor distribui para cada grupo duas ou três fichas de cartolina, com um provérbio conhecido, esclarecendo que este é um tipo de frase lapidar, concisa e com um sentido exato e que apresenta um ensinamento proveniente da sabedoria popular. Entrega também fichas em branco para que os grupos acrescentem outras frases por eles conhecidas no mesmo estilo. Após uma pequena discussão, o grupo deve eleger a frase que, para a maioria, é a mais significativa, fazendo uma pequena exposição dos motivos e/ou ilustrando-a com situações cotidianas. Abaixo estão relacionados alguns exemplos de provérbios, com os nomes das respectivas fábulas a que se referem:

OBSERVAÇÃO: Ao distribuir as fichas com os provérbios, o professor deve ter o cuidado de não fazer a indicação dos títulos das fábulas, pois este conhecimento será inferido pelos próprios alunos.

Atividade 2 – Leitura de fábulas

O professor distribui para cada grupo duas ou três fábulas diferentes, as quais ilustram as morais anteriormente apresentadas. Os grupos trocam os textos entre si, até que todos tenham lido todas as fábulas. A atividade tem o propósito de familiarizar os alunos com a forma e a linguagem do gênero, além de ampliar o seu repertório.

Atividade 3 – Definindo a fábula

O professor solicita aos alunos que apontem, oralmente, características comuns a todos os textos lidos. O professor poderá fazer perguntas que chamem atenção para aspectos como brevidade da história, presença de personagens animais que agem como seres humanos, ausência de indicações precisas de tempo e espaço, explicitação de uma moral.


Formule agora um conceito para esse tipo de texto:

Fábula é _____________________________________________________________

Atividade 4 – Descobrindo significados

Procure no dicionário alguns significados da palavra “moral”.

a)________________________________________________________________________

b)________________________________________________________________________

c) _______________________________________________________________________

d) _______________________________________________________________________

e) _______________________________________________________________________


Atividade 5 – Estabelecendo valores

Complete o quadro abaixo, apontando, a partir da discussão com seus colegas de grupo, aqueles valores que, na opinião de vocês, são, em geral, aceitos pela sociedade, em oposição àqueles que são condenados:

Leitura compreensiva e interpretativa do texto

Atividade 6 – Leitura dramatizada da fábula “O lobo e o cordeiro”

A razão do mais forte é a que vence no final
(nem sempre o Bem derrota o Mal).
Um cordeiro a sede matava
nas águas limpas de um regato.
Eis que se avista um lobo que por lá passava
em forçado jejum, aventureiro inato,
e lhe diz irritado: - "Que ousadia
a tua, de turvar, em pleno dia,
a água que bebo! Hei de castigar-te!"
- "Majestade, permiti-me um aparte" -
diz o cordeiro. - "Vede
que estou matando a sede
água a jusante,
bem uns vinte passos adiante
de onde vos encontrais. Assim, por conseguinte,
para mim seria impossível
cometer tão grosseiro acinte."
- "Mas turvas, e ainda mais horrível
foi que falaste mal de mim no ano passado.
- "Mas como poderia" - pergunta assustado
o cordeiro -, "se eu não era nascido?"
- "Ah, não? Então deve ter sido
teu irmão." - "Peço-vos perdão
mais uma vez, mas deve ser engano,
pois eu não tenho mano."
- "Então, algum parente: teus tios, teus pais. . .
Cordeiros, cães, pastores, vós não me poupais;
por isso, hei de vingar-me" - e o leva até o recesso
da mata, onde o esquarteja e come sem processo.
La Fontaine. Fábulas, 1992.

O professor distribui a fábula para os grupos e solicita que preparem uma leitura dramática (três participantes fazem os papéis do lobo, do cordeiro e do narrador e os demais “dirigem” a atuação dos atores. O professor deve alertar os alunos para que as falas fiquem bem caracterizadas, de acordo com o que as personagens representam, e para que acentuem o ritmo e as rimas dos versos que compõem o texto).

OBSERVAÇÃO: O professor poderá esclarecer as dificuldades de vocabulário, acompanhando o ensaio dos grupos. Da mesma forma, deverá chamar atenção para a composição do texto na forma de versos.

Atividade 7 – Trabalhando a estrutura do texto

a) Enumere, pelos menos, três adjetivos definidores do caráter do lobo do cordeiro.

b) O encontro do lobo e do cordeiro acontece “nas águas limpas de um regato”. É possível determinar a localização exata do cenário onde se passa a ação? Justifique sua resposta.
________________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________________

c) No verso “foi que falaste mal de mim no ano passado”, a expressão grifada permite situar a ação no tempo? Explique sua resposta.
________________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________________

d) O que nos permite afirmar que o lobo e o cordeiro eram velhos conhecidos?
________________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________________

e) Enumere os argumentos usados pelo lobo para justificar o castigo imposto ao cordeiro.
________________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________________

f) A fábula apresenta um ensinamento ao leitor. Que ensinamento é este e quem o transmite?
________________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________________

g) Por que o segundo verso – (nem sempre o Bem derrota o Mal) - está colocado entre parênteses? O que significa a expressão “nem sempre”?
________________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________________

h) Complete a frase, explicando-a com as suas palavras:
A razão do mais forte é a que vence no final, pois _____________________________________
_____________________________________________________


Atividade 8 - Comparando versões de uma mesma fábula

a) Você vai ler agora como a fábula “O leão e o rato” foi contada por três autores diferentes – Esopo, na Grécia antiga, cerca do século IV a.C, La Fontaine, no século XVII, e Monteiro Lobato, no início do século XX.

O LEÃO E O RATO (Esopo)

O leão era orgulhoso e forte, o rei da selva. Um dia, enquanto dormia, um minúsculo rato correu pelo seu rosto. O grande leão despertou com um rugido. Pegou o ratinho por uma de suas fortes patas e levantou a outra para esmagar a débil criatura que o incomodara.
- Ó, por favor, poderoso leão – pediu o rato. Não me mate, por favor. Peço-lhe que me deixe ir. Se o fizer, um dia eu poderei ajudá-lo de alguma maneira.
Isso foi para o felino uma grande diversão. A idéia de que uma criatura tão pequena e assustada como um rato pudesse ser capaz de ajudar o rei da selva era tão engraçada que ele não teve coragem de matar o rato.
- Vá-se embora – grunhiu ele – antes que eu mude de idéia.
Dias depois, um grupo de caçadores entrou na selva. Decidiram tentar capturar o leão. Os homens subiram em suas duas árvores, uma de cada lado do caminho, e seguraram uma rede lá encima.
Mais tarde, o leão passou despreocupadamente pelo lugar. Ato contínuo, os homens jogaram a rede sobre o grande animal. O leão rugiu e lutou muito, mas não conseguiu escapar.
Os caçadores foram comer e deixaram o leão preso à rede, incapaz de se mover. O leão rugiu por ajuda, mas a única criatura na selva que se atreveu a aproximar-se dele foi o ratinho.
- Oh, é você? – disse o leão. Não há nada que possa fazer para me ajudar. Você é tão pequeno!
- Posso ser pequeno – disse o rato 0 mas tenho os dentes afiados e estou em dívida com você.
E o ratinho começou a roer a rede. Dentro de pouco tempo, ele fizera um furo grande o bastante para que o leão saísse da rede e fosse se refugiar no meio da selva.

Às vezes o fraco pode ser de ajuda ao forte.
ESOPO. Fábulas de Esopo, 1995.


O LEÃO E O RATO (La Fontaine)

Vale a pena espalhar razões de gratidão:
Os pequenos também têm sua utilidade.
Duas fábulas* mostrarão
que eu não estou falando senão a verdade.

Ao sair do buraco, um rato,
Entre as garras terríveis de um leão, se achou.
O rei dos animais, em mui magnânimo ato,
Nada ao ratinho fez, e com vida o deixou.
A boa ação não foi em vão.
Quem pensaria que um leão
Alguma vez precisaria
De um rato tão pequeno? Pois é, meu amigo,
Leão também corre perigo,
E aquele ficou preso numa rede, um dia.
Tanto rugiu, que o rato ouviu e acudiu,
Roendo o laço que o prendia.

Mais vale a pertinaz labuta
Que o desespero e a força bruta.

* Para ilustrar a mesma moral, La Fontaine conta, na seqüência, outra fábula, intitulada “A pomba e a formiga”.
La Fontaine, Fábulas, 1992.

O LEÃO E O RATINHO (Monteiro Lobato)
Ao sair do buraco viu-se o ratinho estre as patas do leão. Estacou, de pêlos em pé, paralisado pelo terror. O leão, porém, não lhe fez mal nenhum.
- Segue em paz, ratinho; não tenhas medo do teu rei.
Dias depois o leão caiu numa rede.. Urrou desesperadamente, de bateu-se, mas quanto mais se agitava mais preso no laço ficava.
Atraído pelos urros, apareceu o ratinho.
- Amor com amor se paga – disse ele lá consigo e pôs-se a roer as cordas. Um instante conseguir romper uma das malhas. E como a rede era das tais que rompida a primeira malha e fugir.

Mais vale paciência pequenina
Do que arrancos de leão.
Monteiro Lobato. Fábulas, 1994.

Agora, compare as fábulas, de acordo com os aspectos indicados no quadro abaixo, e veja o que muda e o que permanece nas suas sucessivas reescrituras:

b) Na comparação das diferentes versões, é possível perceber indicações que remetem ao contexto histórico no qual as fábulas foram escritas? Justifique sua resposta.
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Transferência e aplicação da leitura

Atividade 9 – Escrevendo uma carta

Escreva uma carta para um destinatário (alguém próximo de você ou uma pessoa conhecida do público), para quem você aconselharia a leitura dessa fábula. Não esqueça de apresentar-lhe as razões para isso.

Atividade 10 – Mudando o final

A fábula “O cordeiro e o lobo” de La Fontaine foi recontada por Monteiro Lobato, no livro Fábulas. Nesse livro, após cada relato, segue-se um pequeno diálogo das personagens do Sítio do Picapau Amarelo comentando a respeito da história que ouviram. Leia o comentário a essa fábula:

Estamos diante da fábula mais famosa de todas – declarou Dona Benta. Revela a essência do mundo. O forte tem sempre razão. Contra a força não há argumentos.
- Mas há esperteza! – berrou Emília. Eu não sou forte, mas ninguém me vence. Por quê? Porque aplico a esperteza. Se eu fosse esse cordeirinho, em vez de estar bobamente a discutir com o lobo, dizia: “Senhor Lobo, é verdade, sim, que sujei a água desse riozinho, mas foi para envenenar três perus recheados que estão bebendo ali embaixo”. E o lobo com água na boca: “Onde?” E eu, piscando o olho: “Lá atrás daquela moita!” E o lobo ia ver e eu sumia...
- Acredito – murmurou Dona Benta. E depois fazia de conta que estava com uma espingarda e, pum! na orelha dele, não é? Pois fique sabendo que estragaria a mais bela e profunda das fábulas. La Fontaine a escreveu dum modo incomparável. Quem quiser saber o que é obra-prima, leia e analise a sua fábula do Lobo e do Cordeiro (Lobato, 1994, p. 42-43).

Siga o exemplo de Emília e reescreva a fábula, dando a ela um final diferente. Antes disso, leia algumas informações sobre La Fontaine:

Jean de La Fontaine é francês, nascido em 8 de julho de 1621 e falecido em 13 de abril de 1695. É principalmente conhecido como autor de fábulas, escritas em versos leves e rimados. Além de criar algumas fábulas originais muito conhecidas, representativas do contexto da aristocracia francesa do século XVII, como por exemplo, “O lobo e o cordeiro” e “A cigarra e a formiga”, reescreveu algumas fábulas baseadas em Esopo. Esopo foi outro grande criador de fábulas, que viveu na Grécia como escravo no século V a.C. Embora tivesse uma aparência estranha - consta que era corcunda - possuía o dom da palavra e a habilidade de contar histórias, que retratavam o comportamento humano através de personagens animais. Algumas dessas fábulas de Esopo são conhecidas ainda hoje, como “A raposa e as uvas”, “O leão e o rato”, “A lebre e a tartaruga”, entre outras.

Atividade 11 - Refabulando

Leia a fábula “A raposa e as uvas”, na versão de La Fontaine, e reconte-a utilizando as suas próprias palavras.

Certa raposa astuta, normanda ou gascã,
Quase morta de fome, sem eira nem beira,
Andando à caça, de manhã,
Passou por uma alta parreira,
Carregada de cachos de uvas bem maduras.
Altas demais – não houve impasse:
“Estão verdes... já vi que são azedas, duras...”
Adiantaria se chorasse?
(La Fontaine. Fábulas, 1992, p. 211).

Atividade 12 – Trabalhando a ilustração

Observe a ilustração de Gustave Doré feita para essa fábula.

Agora, crie uma fábula a partir da ilustração.

Atividade 13 – Recriando fábulas

Leia a fábula original de La Fontaine “A cigarra e a formiga”. Depois, compare-a com as recriações de Monteiro Lobato e José Paulo Paes.

A CIGARRA E A FORMIGA

A cigarra, sem pensar
em guardar,
a cantar passou o verão.
Eis que chega o inverno, e então,
sem provisão na despensa,
como saída, ela pensa
em recorrer a uma amiga:
sua vizinha, a formiga,
pedindo a ela, emprestado,
algum grão, qualquer bocado,
até o bom tempo voltar.
"Antes de agosto chegar,
pode estar certa a senhora:
pago com juros, sem mora."
Obsequiosa, certamente,
a formiga não seria.
"Que fizeste até outro dia?"
perguntou à imprevidente.
"Eu cantava, sim, Senhora,
noite e dia, sem tristeza."
"Tu cantavas? Que beleza!
Muito bem: pois dança agora..."
Do livro Fábulas de La Fontaine, 1992.


SEM BARRA

Enquanto a formiga
Carrega comida
Para o formigueiro,
A cigarra canta,
Canta o dia inteiro.

A formiga é só trabalho.
A cigarra é só cantiga.

Mas sem a cantiga
da cigarra
que distrai da fadiga,
seria uma barra
o trabalho da formiga
(Paes, s.d.).

A CIGARRA E A FORMIGA (A FORMIGA BOA)

Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé do formigueiro. Só parava quando cansadinha; e seu divertimento era observar as formigas na eterna faina de abastecer as tulhas.
Mas o bom tempo afinal passou e vieram as chuvas, Os animais todos, arrepiados, passavam o dia cochilando nas tocas.
A pobre cigarra, sem abrigo em seu galhinho seco e metida em grandes apuros, deliberou socorrer-se de alguém.
Manquitolando, com uma asa a arrastar, lá se dirigiu para o formigueiro. Bateu – tique, tique, tique...
Aparece uma formiga friorenta, embrulhada num xalinho de paina.
- Que quer? – perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama e a tossir.
- Venho em busca de agasalho. O mau tempo não cessa e eu...
A formiga olhou-a de alto a baixo.
- E que fez durante o bom tempo que não construí a sua casa?
A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois dum acesso de tosse.
V - Eu cantava, bem sabe...
- Ah!... exclamou a formiga recordando-se. Era você então que cantava nessa árvore enquanto nós labutávamos para encher as tulhas?
- Isso mesmo, era eu...
Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua cantoria nos proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho. Dizíamos sempre: que felicidade ter como vizinha tão gentil cantora! Entre, amiga, que aqui terá cama e mesa durante todo o mau tempo.
A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol.
Do livro Fábulas, Monteiro Lobato, 1994.

a) O que há de comum nas releituras que Lobato e José Paulo Paes, autores do século XX, fazem da fábula de La Fontaine, escrita no século XVII? É possível detectar uma mudança de moral de uma época para outra?
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b) Leia a fábula de Esopo “A raposa e o corvo”. Experimente introduzir modificações na história. Você pode alterar o final, incluir novos personagens e cenários, enfim, interferir no texto à vontade.

A raposa e o corvo

Um dia um corvo estava pousado no galho de uma árvore com um pedaço de queijo no bico quando passou uma raposa. Vendo o corvo com o queijo, a raposa logo começou a matutar um jeito de se apoderar do queijo. Com esta idéia na cabeça, foi para debaixo da árvore, olhou para cima e disse:
-Que pássaro magnífico avisto nessa árvore! Que beleza estonteante! Que cores maravilhosas! Será que ele tem uma voz suave para combinar com tanta beleza! Se tiver, não há dúvida de que deve ser proclamado rei dos pássaros.
Ouvindo aquilo o corvo ficou que era pura vaidade. Para mostrar à raposa que sabia cantar, abriu o bico e soltou um sonoro "Cróóó!" . O queijo veio abaixo, claro, e a raposa abocanhou ligeiro aquela delícia, dizendo:
-Olhe, meu senhor, estou vendo que voz o senhor tem. O que não tem é inteligência!
Moral: cuidado com quem muito elogia.
Do livro Fábulas de Esopo, 1994.

Atividade 14 – Organizando uma coletânea de fábulas

Você já deve ter reparado que cada bicho tem um jeito de ser, possui comportamentos e “humores” distintos um do outro. Organize, junto com o professor e os colegas, uma lista de animais, caracterizando-os de acordo com a natureza própria de cada um. Agora, é só escolher os bichos que farão parte de sua história, cuidando para representá-los de acordo com suas características, ou invertendo-as para obter um efeito de humor. A moral deve ser acrescentada ao final. O professor organiza a produção dos alunos em um livro e promove uma sessão de autógrafos na escola.

OBSERVAÇÃO: Com isso, os alunos estarão compreendendo que a fábula só “funciona” a partir de uma imagem plana e estereotipada do comportamento das personagens.

NOTAS

1 Doutora em Teoria Literária pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e professora do Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter.

REFERÊNCIAS

ESOPO. 1994. Fábulas de Esopo. São Paulo, Companhia das Letrinhas.

ESOPO. 1995. Fábulas de Esopo. São Paulo, Loyola.

LA FONTAINE, J. de. 1992. Fábulas de La Fontaine. Belo Horizonte, Itatiaia.

LOBATO, M. 1994. Fábulas. São Paulo, Brasiliense.

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