terça-feira, 30 de março de 2010

NARRATIVAS PROSA E VERSO: PROJETO professora Sandra

ODE DESCONTÍNUA E REMOTA PARA FLAUTA E OBOÉ. DE ARIANA PARA DIONÍSIO


I

É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.

Voz e vento apenas

Das coisas do lá fora

E sozinha supor

Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento

Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento

Meu ouvido escutaria

O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.

Porque é melhor sonhar tua rudeza

E sorver reconquista a cada noite

Pensando: amanhã sim, virá.

E o tempo de amanhã será riqueza:

A cada noite, eu Ariana, preparando

Aroma e corpo. E o verso a cada noite

Se fazendo de tua sábia ausência.



II

Porque tu sabes que é de poesia

Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,

Que a teu lado te amando,

Antes de ser mulher sou inteira poeta.

E que o teu corpo existe porque o meu

Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,

É que move o grande corpo teu

Ainda que tu me vejas extrema e suplicante

Quando amanhece e me dizes adeus.


III

A minha Casa é guardiã do meu corpo

E protetora de todas minhas ardências.

E transmuta em palavra

Paixão e veemência

E minha boca se faz fonte de prata

Ainda que eu grite à Casa que só existo

Para sorver a água da tua boca.

A minha Casa, Dionísio, te lamenta

E manda que eu te pergunte assim de frente:

À uma mulher que canta ensolarada

E que é sonora, múltipla, argonauta

Por que recusas amor e permanência?


IV

Porque te amo

Deverias ao menos te deter

Um instante

Como as pessoas fazem

Quando vêem a petúnia

Ou a chuva de granizo.

Porque te amo

Deveria a teus olhos parecer

Uma outra Ariana

Não essa que te louva

A cada verso

Mas outra

Reverso de sua própria placidez

Escudo e crueldade a cada gesto.

Porque te amo, Dionísio,

é que me faço assim tão simultânea

Madura, adolescente

E por isso talvez

Te aborreças de mim


V

Quando Beatriz e Caiana te perguntarem, Dionísio

Se me amas, podes dizer que não. Pouco me importa

ser nada à tua volta, sombra, coisa esgarçada

No entendimento de tua mãe e irmã. A mim me importa, Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido

E o que tu dizes nem pode ser cantado

Porque é palavra de luta e despudor.

E no meu verso se faria injúria

E no meu quarto se faz verbo de amor


VI

Três luas Dionísio

Não te vejo

Três luas percorro a casa minha

E entre o pátio e a figueira

Converso e passeio com meus cães

E fingindo ao te ver

Digo a minha estrela, essa que é inteira prata 10 mil

sóis

Sírios pressagam que Ariana pode estar sozinha sem

Dionísio Sem riqueza ou fama porque há dentro dela um

som maior

Amor que se alimenta de uma chama

Movediça e lunada

Mais luzente alta quando tu Dionísio não estás

Três luas, Dionísio, não te vejo



VII

É licito me dizeres, que Manan, tua mulher

Virá à minha Casa, para aprender comigo

Minha extensa e difícil dialética lírica?

Canção e liberdade não se aprendem

Mas posso, encantada, se quiseres

Deitar-me com o amigo que escolheres

E ensinar à mulher e a ti, Dionísio,

A eloqüência da boca nos prazeres

E plantar no teu peito, prodigiosa

Um ciúme venenoso e derradeiro.



XIII

Se Clodia despregou Catuno

e teve Rufus, Quintios e Gelios

Inácios e Ravidus

Tu podes muito bem Dionísio

ter mais cinco mulheres e desprezar Ariana

Que é centeia e ancora

Que é centeia e ancora

E refrescar tuas noites

com teus amores breves

Ariana e Catuno luxuriante

Eterna eternidade, a coisa breve

A alma dos poetas não inflama

Nem é justo Dionísio pedires ao poeta

Que seja sempre terra o que é celeste

E que terrestre não seja o que é só terra.


IX

Tenho meditado e sofrido

Irmanada com esse corpo

E seu aquático jazigo

Pensando

Que se a mim não me deram

Esplêndida beleza

Deram-me a garganta

Esplandecida: palavra de ouro

A canção imantada

O sumarento gozo de cantar

Iluminada,

ungida.

E te assustas do meu canto.


X

Se todas as tuas noites fossem minhas
Eu te daria, Dionísio, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa
E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.

Se todos os teus dias fossem meus

Eu te daria, Dionísio, a cada noite

O meu tempo lunar, transfigurado e rubro

E agudo se faria o gozo teu



Hilda Hilst

Nenhum comentário:

Postar um comentário